4 de set. de 2010

11. Horta não precisa de motivo pra festa

Quando perdi a virgindade e meu pai soube, saímos os dois para jantar. Eu era noiva, tinha dezessete anos, e pensava em casar a qualquer hora. Eu e meu pai Antenor Francisco tivemos um jantar regado a lágrimas, não pela virgindade perdida mas, pasmem, pela lembrança da ausência do meu avô.
Meu pai falava disso com tanta veemência, como se estivesse acontecendo naquela dia. E chorava. Eu também era chorona, mas um dia prometi a mim mesma domar essa característica dos Horta, quiçá de todos os diamantinenses. Meu pai me contou, nessa janta, pela centésima vez, como ele se arrependia de ter atravessado a rua quando viu, de longe, o pai dele, bêbado. Teve vergonha dos amigos.
Ele se arrependia de ter atravessado a rua e fugido do pai.
E as outras vezes em que se cruzaram nas ladeiras estreitas de Diamantina? Cumprimentavam-se?

A memória é uma mala atrapalhada.
Falou da bala que nunca ganhou, elogiou vovó Adila, como sempre, e repetiu os mesmos motes.
Fico analisando hoje em dia esses fatos de sua infância.
Vejamos: Dimantina é uma cidade pequena. Houve um tempo em que nem era vila. Devia ser mínima em mil novecentos e trinta, digamos que seja o ano em que meu pai atravessou a rua fugindo do pai dele. Posso deduzir, pelo tamanho de Dimantina, que meu pai e o pai dele vivessem se encontrando no Beco do Mota, em outros becos que são muitos, esquinas, ladeira, e ruas, da pequenina cidade.
Na edição da memória, meu pai pinçou esta travessia, a bala que não ganhou, e outros poucos fatos que repetia. Meu pai saiu de Diamantina com treze anos. Como pôde ser tão ausente um pai que morava na mesma cidade do filho, sendo a cidade mínima? Será que meu avô ia para outras cidades? Será que os meninos não saíam às ruas? Ou será que meu pai Antenor Francisco se esqueceu das outras travessias, ou das vezes que não atravessou a rua para evitar o pai, das vezes que encontrou o pai e falou com ele?
Dirceu não jogava bola na rua com os outros meninos nem tomava banho de rio. Sinhá Linda não deixava. Queria que ele estudasse e frequentasse o seminário. Aos noventa anos, passeando pelo lugar onde as outras crianças jogavam bola, Dirceu comenta o fato sem ressentimentos. Orgulhoso de si mesmo, Dirceu acha que todo o sacrifício de Lilinda não foi em vão. Ele se tem em boa conta e acha que ela fez dele um grande homem. E eu acho bonito isso. Um cara ter uma boa ideia de si mesmo.
Meu avô Antenor Horta de vez em quando ficava internado em Barbacena, como já sabemos, e depois que o porre passava, escrevia tudo que via com seus olhos azuis e lúcidos dentro daquele hospital que de tão grande ficou conhecido como Cidade dos Loucos.
Portanto, podemos concluir que ele se ausentava, mas voltava para Dimantina, e gerava mais filhos.
Minha avó Adila tinha três irmãos, um era padre, as duas irmãs não se casaram e consta que nunca sequer deram um beijo na boca (esse assunto é divertido). Vovó Adila fugiu para casar. Moderna, trabalhou no Telégrafo, um correlato da Internet de hoje. Trabalhava, criava os filhos, colocava outros no mundo, e tocava bandolim.
Tia Lourinha me tratava como neta legítima. Fazia todas as minhas vontades. Tinha uma preferência por meu irmão, Antenor Francisco de Vasconcelos Horta Junior, porque era caçula e homem, mas me amava e paparicava muito.
Eu me lembro que uma vez, no seu apartamento no Leblon, eu me interessei por uma chaleira de porcelana em forma de elefante que ela tinha na cristaleira. O chá saía pela tromba. O que uma criança como eu ia fazer com uma coisa dessas? Tia Lourinha não pestanejou: abriu a cristaleira e me deu de presente a chaleira de elefante. A casa delas (morava com tia Lilinda) sempre foi arrumadinha e com cheirinho de velhinha mineira, um cheiro de talco, misturado com um cheiro de nada. Ela não queria que a gente sentasse na cama com a roupa que usamos na rua, usava rouge e tinha um vestido de festa.
Só para implicar, vou afirmar que tia Lourinha gostava mais de mim que minha avó Adila, que tinha muitos outros netos.
Quando vovó Adila estava no Hospital Silvestre doente para morrer, me chamou no banheiro. Não sei em que ano vovó Adila morreu (a prima Mônica, que lembra de tudo, me dirá), mas talvez eu fosse uma dolescente.
No quarto, tia Wanda, já uma senhora, chorava muito.
Devia estar um chororô geral, porque os filhos de Dimantina não se fazem de rogados, choram!!!
Vovó me disse: "Glorinha, não deixa meus filhos chorarem por mim, eu vou morrer mesmo, mas eu já vivi muito. Eu tive uma vida longa. Vivi demais, tá na hora. Você dá um jeito neles?"
Pois é, vó, bem que tentei. Mas eu era apenas uma adolescente, embora acostumada a me pedirem coisas difíceis. Minha mãe me pedia, desde que eu tinha nove anos, pra eu cuidar da minha irmã, afirmando que ela me ouvia. Quando eu fiz quarenta anos, e minha irmã trinta e nove, e mamãe me disse a mesma coisa, respondi finalmente: Não, mamãe, ela não me ouve.
Mas a minha infância é outra história. Tive outras travessias de ruas, outros abandonos, outras perdas. Os filhos homens de Adila: Armando, Dirceu e Antenor, meu pai, sempre foram muito centrados neles mesmos, naquela época de luta. E meu pai não percebia o quanto estava sendo ausente quando não nos ouvia porque estava preocupado com sua própria infância e os percalços de seu próprio pai.
Mas por enquanto a vida dos netos de Adila não interessa, nem das noras, nem dos bisnetos que chegaram depois nem dos trinetos que estão nascendo agora. O foco sempre foi - e até aqui continua sendo - os filhos homens de Adila.
Não sei que rumo terá este texto, sei que ir à Diamantina e ouvir de novo, após trinta anos da morte de meu pai, todas estas mesmas histórias, me empurrou para este desabafo. E desabafo é feito vazamento de cano. Nunca se sabe onde vai pingar a água. É preciso quebrar paredes.
Vamos relembrar os aniversários, natais, páscoas, dias das mães, dos pais, e de qualquer coisa. Horta não precisa de motivo para dar festas. Todo dia é dia de festa. Com dezoito anos fui morar com meu pai em Copacabana e quase todo sábado tinha festa no apartamento. Eu não presenciava pois todo sábado eu ia para Búzios. Horta legítimo gosta de divertimento.Na minha infância, as festas de família eram regadas a muita bebida, muita comida, muita música, poesia e discurso. Na hora do discurso as crianças como eu e minhas primas tentávamos escapar para os quartos. Achávamos uma chatura. Os discursos eram repetidos, imensos, com veemência, lágrimas e aplausos, e eram sempre três a falar. Meu pai, tio Dirceu e tio Armando, que tinha o discurso mais longo porque não tinha se formado em Direito. Talvez vovó Adila também achasse uma chatura, nunca saberei. Hoje gosto de ouvir os discursos de tio Dirceu porque vejo meu pai. Mas hoje é diferente, tenho a idade que meu pai tinha quando morreu. Minha vida vai seguir, então por isso terei mais chances de emendar os erros e apurar os acertos. Ele não teve.
Voltando às festas. As músicas eram interativas, como "Se a perpétua cheirasse", onde cada um compunha uma quadra, e todos cantavam juntos o refrão. (Se a perpétua cheirasse / seria a rainha das flores / mas como a perpétua não cheira ai ai ai / não é a rainha das flores.... Da minha casa pra tua / dá-se o passo de uma cobra /; quisera poder chamar / tua mãe de minha sogra... Não sei se é fato ou se é fita / não sei se é fita ou se é fato / o fato é que ele me fita / me fita mesmo de fato... Mandei comprar na farmácia / remédios para uma ausência / mandaram-me uma saudade / repleta de paciência... e por aí vai, mas o lance era inventar na hora) Muitos preparavam o improviso em casa. Depois era a hora do tio Geraldo, com seu vozeirão e seu barrigão, cantar. Como cantava. Pena que o repertório da família não se atualizava. Eram sempre as mesmas músicas e sempre os mesmos discursos. Mei pai recitava poemas enormes, de cor, como o de um menino que não devia se envergonhar por seguir os passos de seu pai. E a história-poema era contada através da metáfora de um menino pisando nas pegadas do pai na areia da praia. Meu pai também era bom de contar casos, piadas, fazer mágica, propor brincadeiras de salão, era um verdadeiro animador de festas. Mas isso conto mais adiante. Herdei um pouco disso.
Minha mãe contava que precisou decorar poemas para frequentar as festas da família Horta.
E reparou que no Dia das Mães ou em qualquer outra data (Horta não precisa de motivo pra festa), na hora do discurso, meu pai homenageava minha avó Adila, e desfilava o rosário de lágrimas pelo qual ela tinha passado em sua vida, meu pai chorava um pouco, com seus olhos azuis avermelhados, lamentava o imenso sofrimento e elogiava o caráter, os feitos, a dignidade, e a coragem de sua mãe, Adila.
Toda festa era a mesma coisa. O que minha mãe reparou foi que na sala sempre havia um monte de mães. As noras, as tias, as filhas que viraram mães, as visitas... mas meu pai só elogiava a mãe dele. Uma tremenda de uma falta de educação. Mãe, pra ele, só a dele.
Tio Geraldo cantava e eu e Mônica lembramos a letra da música. Outro dia ela foi almoçar lá em casa e cantamos juntas. (Mônica, me salva, esqueci!) Tia Célia tocava violão com suas unhas vermelhas e seus olhos azuis. (Em noites claras de lua / eu vejo do meu sobrado / num canto escuro da rua / Rosinha e seu namorado..) As crianças: eu e minhas primas, fazíamos mímica, dançávamos, e cantávamos. Roseana, Mônica, Rosana e eu tínhamos nosso repertório, que também era repetitivo e os adultos deviam achar um saco. Cantávamos "Adeus, Sarita. Vou partir para a fronteira. Levando minha boiada / para vender lá na feira. Com o dinheiro dessa venda / eu vou comprar / mais uma linda fazenda / pra contigo me casar. No dia do casamento / vai ter baile a noite inteira / e a orquestra vai tocar / essa rancheira. Meus amigos reunidos / cantarão para nós dois. E a nossa felicidade / virá depois) Que fofo!!! Eu e minha irmã tínhamos um chapéu e uma bengala (tínhamos?) e fazíamos mímica da música do.. Bat Masterson! (No velho Oeste ele nasceu / e entre bravos se criou / seu nome em lenda se tornou / Bat Masterson, Bat Masterson!). Também me lembro de imitar Rita Pavone. E vou parar por aqui pois estou me sentindo uma centenária.
O assunto é meu avô Antenor, minha avó Adila e minhas tias-avós Lourinha e Sinhá Linda.
Adila teve dez netas, três netos, dezoito bisnetos. Treze trinetos?
Os trinetos, infelizmente, nem sei direito quanto são e já não se conhecem mais.
Um dia sentaremos todos no banco dos réus?
Ou vamos parar de julgar e, já que não podemos perdoar porque não somos juízes, recontar esta história embelezada?
E já que também não existem verdades, mas versões, como neta direta de Adila de Vasconcellos Horta, tenho pleno direito a criar a versão que mais me agradar e a inventar outras porque sou artista.

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